Inspiração não sai do suvaco

Só de vez em quando

Tá ali você rolando eternamente pelo feed do Instagram quando de repente PLAU, algum story lindo, em um lugar que parece saído de filme, quase invejável. Sua reação imediata é pensar: "Que cenário inspirador. Imagino estar ali". Mais alguns posts e stories depois, sua influenciadora predileta malhando logo cedo. Puro suco de inspiração.

Em 10 minutos você terá visto centenas de imagens e vídeos, boa parte "inspiradores", boa parte divertidos, alguns mequetrefes e finalmente você sai da cama para sua rotina nada inspiradora: escovar dentes, tomar banho, escolher roupa, pegar trânsito, chegar no trabalho, ler essa newsletter, fazer algo chato pelo resto do dia.

Sem prestar muita atenção, você vai escutando músicas e podcasts, imaginando quão inspiradas aquelas pessoas estavam quando gravaram uma obra-prima ou deram aquela entrevista com trechos memoráveis.

Elas não estavam inspiradas. Assim como aquelas da sua sequência de stories não estavam mais inspiradas para treinar só porque visitaram um lugar bonito.

Não me considero um artista, mas considero que o trabalho de cada pessoa é a forma que ela tem de fazer alguma “arte”. É a habilidade materializada e entregue a alguém. Dia desses dei alguma palestra que foi bem elogiada pela de explicação de dados técnicos (e chatos), até disseram que eu estava inspirado...

Só que apresentar dados chatos é algo que faço desde 2011.

Posso dizer que eu tenho dado há muitos anos.

Piadas de qualidade, a gente vê por aqui.

A inspiração é um sistema de juros compostos que só dá resultado graças a algum “vício”. É isso mesmo, vício. Grandes artistas não simplesmente acordam inspirados a fazer algo incrível ou injetam uma dose de dopamina por minuto como nós fazemos nas redes. Essa galera é viciada em hábitos dos mais chatos aos mais peculiares. E por serem altamente fiéis a esses vícios, conseguem entrar no piloto automático da criação.

Alguns desses vícios incluem o ócio. Esse eu defendo com unhas e dentes.

Li um livro bem interessante chamado Daily Rituals, escrito pelo jornalista Mason Currey. É um apanhado dos rituais diários de aproximadamente 150 artistas, inventores e pessoas notáveis dos últimos 4 séculos. Em comum, quase todos dedicavam um mínimo de 3 a 6 horas por dia às suas artes. Mais em comum ainda, todos eram fiéis a certas manias, certos vícios.

Exercício pode ser um vício, assim como café, charuto, tocar instrumentos, lavar louça… Não tô aqui para julgar as manias de ninguém, toda essa galera tinha suas manias bizarras e eram fiéis a elas. Em contrapartida, eram também viciadas em forçar a arte a ser feita.

Não digo que há um equilíbrio, mas uma busca entre dedicar tempo a deixar o cérebro “afastado” do ofício, e tempo à tentativa e erro.

Não lembro de nenhum relato do livro no qual é dito que uma pessoa magicamente entregava o melhor trabalho do ano. Era quase sempre o fruto de muito esforço repetitivo, um volume brutal de erros até atingir a versão final que pode ser considerada como estado da arte.

Um caso que gosto bem, e nem está no livro. A música Freebird, mundialmente conhecida por seu solo brutal de mais ou menos 5 minutos foi criada assim: Os caras estavam à toa, fazendo uma jam. Um deles começou a soltar os acordes, os outros gostaram e pediram que repetisse. Alguém puxou papel e caneta, escreveu a letra em cima disso em alguns minutos e foi isso. Nas primeiras versões, nem tinha o tal solo.

Eles tinham: o hábito das jams, o hábito de escutarem ativamente, dedicação não só a se divertir nas jams, mas também a estressar as ideias.

Para o seu melhor trabalho criativo surgir, não basta ver 519 referências de outros criadores ou passar 5 dias dirigindo por paisagens paradisíacas. O que faz seu melhor trabalho surgir é repetição, inclusive dos hábitos que alimentam a inspiração (ou motivação), e de tentativas incansáveis. É interessante dedicar tempo a encontrar “seu vício” que ajuda a mente a ficar longe das obrigações.

Há uma frase atribuída ao meu fotógrafo preferido, Henri Cartier-Bresson, de que “suas primeiras 10.000 fotos são as piores”.

E há quem diga que 10.000 horas de prática levam uma pessoa a dominar qualquer habilidade dedicada. Não sei de onde o povo foca tanto nesse número.

O que alimenta a sua e a minha inspiração não é necessariamente a foto do lugar lindo ou o story da pessoa com shape trincado. Esses itens nos provocam, talvez motivem! E o acaso, o descanso, o hobby, possuem valor inestimável para enriquecer sua criatividade.

Mas no fim do dia, dedicar sei lá quantas mil horas a cuidar da mente, sei lá quantas mil horas a estressar o corpo, e depois disso, colocar o que fazemos de melhor em prática, vai fazer toda a diferença entre criar só quando vem a inspiração, e criar até nos dias horríveis!

Inspiração sai do suor. Mas não é por isso que vai sair do suvaco.