F1 pode salvar crianças?

E o que médicos aprenderam com mecânicos?

Você faz parte da equipe de um hospital na Inglaterra e está convivendo com um incômodo bem forte por meses. O incômodo se dá por uma razão bastante justificável: muitas crianças que saem de cirurgias estão morrendo na UTI, mesmo que a cirurgia tenha sido um sucesso. 

Estranho né? E também uma forma não muito leve de iniciar a edição da newsletter na semana das crianças, principalmente se você achou que o F1 do título era sobre acender um negocinho e não a corrida de Fórmula 1!

Mas aconteceu. Duas décadas atrás, um hospital no interior da Inglaterra lutava contra o aumento das mortes infantis após cirurgias. A comunicação entre cirurgiões e intensivistas falhava, os métodos eram desalinhados. Nada parecia funcionar. 

Eis que dois médicos por acaso estão assistindo a uma prova de Fórmula 1 e percebendo algo trivial, porém espetacular. O pit stop. 

Mesmo há 20 anos, o pit stop já era um momento de altíssima intensidade, pouquíssima comunicação e quase zero erro. Em meros seis segundos, as equipes levantavam o carro, trocavam pneus, reabasteciam e devolviam o piloto pra pista.

Eu em seis segundos mal consigo responder um story.

Os doutores Martin Elliot e Allan Goldman questionaram se não era possível aplicar alguma prática de pit stop em procedimentos médicos e, com isso, passaram a contactar algumas das equipes, até que foram bem recebidos pela Ferrari. 

Já em Maranello, na Itália, os médicos receberam o maior intensivo que poderiam receber dos profissionais responsáveis por cada pit stop da Ferrari! Como treinavam, como decidiam a posição e papel de cada membro, quais os sinais de problema ou sucesso, como era a rotina fora do pit. 

Ainda na fase de estudos, também foram consultadas companhias aéreas e profissionais da aviação, mas era hora de lidar com a realidade. Os caras terminaram a parte divertida e voltaram para a terra da comida ruim com toneladas de informações e um desafio: será que a hipótese seria validada?

Na Fórmula 1, a figura do “Lollipop Man” é quem manda no grupo de mecânicos. É ele o responsável principal pela comunicação clara e supervisão da situação. Os médicos entenderam que esse papel seria assumido pelo anestesista. Também decidiram que a comunicação inicial seria sempre entre ele e o cirurgião.

Como funcionava um Pit Stop

Algumas outras mudanças:

  • Três fases obrigatórias (equipamento, informação, discussão), cada qual com sua responsabilidade;

  • Liderança clara: anestesista comanda, depois passa o bastão pro intensivista;

  • Funções na mão de cada um, tipo “cada macaco no seu galho”;

  • Checklist virou regra básica, algo já inspirado na aviação;

  • Todos incentivados a falar, inclusive residentes e enfermeiros

Como ficou o centro cirúrgico

Contra dados não há argumentos.

Testando os métodos da Fórmula 1 na transferência de pacientes e modelos estatísticos robustos, a equipe médica reduziu de 39% para 11,5% os erros de informações em transferências de pacientes. A transferência entre unidades ficou mais rápida, de 10,8 para 9,4 minutos, e a omissão de informações caiu pela metade!

A coisa deu tão certo que o novo protocolo se tornou algo possível de transmitir em meia hora de treinamento e manteve bons indicadores mesmo quando novos membros da equipe entram em cena.

Na medicina, agilidade e protocolo ditam qualquer resultado. 

Semana passada falei sobre treino constante, mas tem outra chave poderosa: observar e questionar.

Cavalos usam antolhos pra não desviar o olhar. Já você e eu, perdemos rumo justamente quando deixamos de olhar pros lados. É issoo que nos permite expandir repertório e ver beleza fora do caminho principal!

Os médicos encontraram novos métodos de operação observando a Fórmula 1 e salvaram vidas com isso. Henry Ford descobriu a linha de produção observando frigoríficos. Algumas vezes,ideias que mudam o mundo estão escondidas nas coisas mais banais. 

Acho que isso é o que me fascina, por exemplo, na fotografia. É um exercício constante de enxergar oportunidades novas em ambientes antigos.

Na verdade, muito da vida é sobre observar, questionar e testar.

Quase sempre isso não custa nada.